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carta enciclica MATER ET MAGISTRA
carta enciclica MATER ET MAGISTRA

CARTA ENCÍCLICA
MATER ET MAGISTRA
DE SUA SANTIDADE
JOÃO XXIII
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS
PATRIARCAS, PRIMAZES,
ARCEBISPOS, BISPOS
E OUTROS ORDINÁRIOS DO LUGAR,
EM PAZ E COMUNHÃO
COM A SÉ APOSTÓLICA,
BEM COMO A TODO O CLERO E FIÉIS DO ORBE CATÓLICO
SOBRE A RECENTE EVOLUÇÃO
DA QUESTÃO SOCIAL
À LUZ DA DOUTRINA CRISTÃ
Introdução
1. Mãe e mestra de todos os povos, a Igreja Universal foi fundada por Jesus Cristo, a
fim de que todos, vindo no seu seio e no seu amor, através dos séculos, encontrem
plenitude de vida mais elevada e penhor seguro de salvação. A esta Igreja, "coluna e
fundamento da verdade" (cf. 1 Tm 3, 15), o seu Fundador santíssimo confiou uma dupla
missão: de gerar alhos, e de os educar e dirigir, orientando, com solicitude materna, a
vida dos indivíduos e dos povos, cuja alta dignidade ela sempre desveladamente
respeitou e defendeu.
2. O cristianismo é, de fato, a realidade da união da terra com o céu, uma vez que
assume o homem, na sua realidade concreta de espírito e matéria, inteligência e vontade,
e o convida a elevar o pensamento, das condições mutáveis da vida terrena, até às
alturas da vida eterna, onde gozará sem limites da plenitude da felicidade e da paz.
3. De modo que a Santa Igreja, apesar de ter como principal missão a de santificar as
almas e de as fazer participar dos bens da ordem sobrenatural, não deixa de preocuparse
ao mesmo tempo com as exigências da vida cotidiana dos homens, não só no que diz
respeito ao sustento e às condições de vida, mas também no que se refere à prosperidade
e à civilização em seus múltiplos aspectos, dentro do condicionalismo das várias
épocas.
4. Ao realizar tudo isto, a Santa Igreja põe em prática o mandamento de Cristo, seu
Fundador, que se refere sobretudo à salvação eterna do homem, quando diz: "Eu sou o
caminho, a verdade e a vida" (Jo 14,6) e "Eu sou a luz do mundo" (Jo 8,12); mas noutro
passo, ao contemplar a multidão faminta, exclamou, num lamento sentido: "Tenho pena
de toda esta gente" (Mc 8,2); manifestando, assim, como se preocupa também com as
exigências materiais dos povos. E não foi só com palavras que o Divino Redentor
demonstrou esse cuidado: provou-o igualmente com os exemplos da sua vida,
multiplicando, várias vezes, por milagres, o pão que havia de saciar a fome da multidão
que o seguia.
5. E com este pão, dado para alimentar o corpo, quis anunciar e significar aquele pão
celestial das almas, que iria deixar aos homens na véspera da sua Paixão.
6. Não é, pois, para admirar, que a Igreja católica, à imitação de Cristo e em
cumprimento das suas disposições, tenha mantido sempre bem alto, através de dois mil
anos, isto é, desde a instituição dos antigos diáconos, até aos nossos tempos, o facho da
caridade, não menos com os preceitos do que com os numerosos exemplos que vem
proporcionando. Caridade, que ao conjugar harmoniosamente os mandamentos do amor
mútuo com a prática dos mesmos, realiza de modo admirável as exigências desta dupla
doação que em si resume a doutrina e a ação social da Igreja.
7. Documento verdadeiramente insigne desta doutrina e desta ação desenvolvida pela
Igreja ao longo dos séculos, deve considerar-se a imortal encíclica Rerum
Novarum, [1] que o nosso predecessor de feliz memória, Leão XIII, há setenta anos
promulgou para formular os princípios que haviam de resolver cristãmente a questão
operária.
8. Poucas vezes a palavra de um papa teve ressonância tão universal, pela profundeza e
vastidão da matéria tratada, bem como pelo vigor incisivo da expressão. A linha de
rumo ali apontada e as advertências feitas revestiram-se de tal importância, que nunca
poderão cair no esquecimento. Foi aberto um caminho novo à ação da Igreja. O Pastor
supremo, fazendo próprios os sofrimentos, as queixas e as aspirações dos humildes e
dos oprimidos, uma vez mais se ergueu como defensor dos seus direitos.
9. E hoje, apesar de ter passado tanto tempo, ainda se mantém real a eficácia dessa
mensagem, não só nos documentos dos papas sucessores de Leão XIII, os quais, quando
ensinam em matéria social, continuamente se referem à encíclica leonina, ora para nela
se inspirarem, ora para esclarecerem o seu alcance, e sempre para estimular a ação dos
católicos; mas até na organização mesma dos povos. Tudo isso mostra como os sólidos
princípios, as diretrizes históricas e as paternais advertências contidas na magistral
encíclica do nosso predecessor conservam ainda hoje o seu valor e sugerem, mesmo,
critérios novos e vitais, para os homens poderem avaliar o conteúdo e as proporções da
questão social, tal como hoje se apresenta, e decidir-se a assumir as responsabilidades
daí resultantes.
PRIMEIRA PARTE
ENSINAMENTOS DA ENCÍCLICA RERUM NOVARUM
E OPORTUNOS DESENVOLVIMENTOS
NO MAGISTÉRIO DE PIO XI E PIO XII
A época da encíclica "Rerum Novarum"
10. Os tempos em que Leão XIII falou eram de transformações radicais, de fortes
contrastes e amargas rebeliões. As sombras daqueles tempos fazem-nos apreciar melhor
a luz que promana do seu ensinamento.
11. Como é sabido de todos, o conceito do mundo econômico, então mais difundido e
posto em prática, era um conceito naturalista, negador de toda a relação entre moral e
economia. O motivo único da ação econômica, dizia-se, é o interesse individual. Lei
suprema reguladora das relações entre os operadores econômicos é a livre concorrência
sem limites. Juros dos capitais, preços das mercadorias e dos serviços, benefícios e
salários, são determinados, de modo exclusivo e automático, pelas leis do mercado. O
Estado deve abster-se de qualquer intervenção no campo econômico. Os sindicatos,
nalguns países, eram proibidos; noutros, tolerados ou considerados como de direito
privado.
12. Num mundo econômico assim concebido, a lei do mais forte encontrava plena
justificação no plano teórico e dominava no das relações concretas entre os homens. E
daí derivava uma ordem econômica radicalmente perturbada.
13. Enquanto, em mãos de poucos, se acumulavam riquezas imensas, as classes
trabalhadoras iam gradualmente caindo em condições de crescente mal-estar. Salários
insuficientes ou de fome, condições de trabalho esgotadoras, que nenhuma consideração
tinham pela saúde física, pela moral e pela fé religiosa. Sobretudo inumanas as
condições de trabalho a que eram freqüentemente submetidas as crianças e as mulheres.
Sempre ameaçador o espectro do desemprego. A família, sujeita a contínuo processo de
desintegração.
14. Daí uma profunda insatisfação nas classes trabalhadoras, entre as quais se propagava
e se consolidava o espírito de protesto e de rebelião. E assim se explica porque
encontraram tanto aplauso, naqueles meios, as teorias extremistas, que propunham
remédios piores que os próprios males.
Os caminhos da reconstrução
15. Coube a Leão XIII, nos momentos difíceis daquele conflito, publicar a sua
mensagem social, baseada na consideração da natureza humana e informada pelas
normas e o espírito do Evangelho; mensagem que, desde que foi conhecida, se bem não
faltassem oposições compreensíveis, suscitou universal admiração e entusiasmo.
Certamente, não era a primeira vez que a Sé Apostólica descia à arena, em defesa dos
interesses materiais dos menos favorecidos. Outros documentos do mesmo Leão XIII
tinham já preparado o caminho; mas, desta vez, formulava-se uma síntese orgânica dos
princípios e desenhava-se uma perspectiva histórica tão ampla, que fizeram da
encíclica Rerum Novarum um verdadeiro resumo do catolicismo no campo econômicosocial.
16. Nem careceu de audácia este gesto. Enquanto alguns ousavam acusar a Igreja
católica de limitar-se, perante a questão social, a pregar resignação aos pobres e a
exortar os ricos à generosidade, Leão XIII não hesitou em proclamar e defender os
legítimos direitos do operário. Ao encetar a exposição dos princípios da doutrina
católica no campo social, declarava com solenidade: "Entramos confiadamente nesta
matéria e fazemo-lo com pleno direito, já que se trata de uma questão para a qual não é
possível encontrar solução eficaz, sem recorrer à religião e à Igreja".[2]
17. Bem conheceis, veneráveis irmãos, os princípios basilares expostos pelo imortal
Pontífice, com tanta clareza como autoridade, segundo os quais deve ser reconstruído o
setor econômico e social da comunidade humana.
18. Dizem respeito, primeiramente, ao trabalho que deve ser considerado, em teoria e na
prática, não mercadoria, mas um modo de expressão direta da pessoa humana. Para a
grande maioria dos homens, o trabalho é a única fonte dos meios de subsistência. Por
isso, a sua remuneração não pode deixar-se à mercê do jogo automático das leis do
mercado; pelo contrário, deve ser estabelecida segundo as normas da justiça e da
eqüidade, que, em caso contrário, ficariam profundamente lesadas, ainda mesmo que o
contrato de trabalho fosse livremente ajustado por ambas as partes.
19. A propriedade privada, mesmo dos bens produtivos, é um direito natural que o
Estado não pode suprimir. Consigo, intrinsecamente, comporta uma função social, mas
é igualmente um direito, que se exerce em proveito próprio e para bem dos outros.
20. O Estado, cuja razão de ser é a realização do bem comum na ordem temporal, não
pode manter-se ausente do mundo econômico; deve intervir com o fim de promover a
produção de uma abundância suficiente de bens materiais, "cujo uso é necessário para o
exercício da virtude"; [3] e também para proteger os direitos de todos os cidadãos,
sobretudo dos mais fracos, como são os operários, as mulheres e as crianças. De igual
modo, é dever seu indeclinável contribuir ativamente para melhorar as condições de
vida dos operários.
21. Compete ainda ao Estado velar para que as relações de trabalho sejam reguladas
segundo a justiça e a eqüidade, e para que nos ambientes de trabalho não seja lesada,
nem no corpo nem na alma, a dignidade de pessoa humana. A este propósito, a encíclica
leonina aponta as linhas que vieram a inspirar a legislação social dos estados
contemporâneos: linhas, como já observava Pio XI na encíclica Quadragesimo
Anno,[4] que eficazmente contribuíram para o aparecimento e a evolução de um novo e
nobilíssimo ramo do direito, o "direito do trabalho".
22. E aos trabalhadores, afirma ainda a encíclica, reconhece-se o direito natural de
constituírem associações, ou só de operários, ou mistas de operários e patrões; como
também o direito de darem às mesmas a estrutura orgânica que julgarem mais
conveniente para assegurarem a obtenção dos seus legítimos interesses econômicoprofissionais,
e o direito de agirem, no interior delas, de modo autônomo e por própria
iniciativa, para a consecução dos mesmos interesses.
23. Operários e empresários devem regular as relações mútuas, inspirando-se no
princípio da solidariedade humana e da fraternidade cristã; uma vez que, tanto a
concorrência de tipo liberal, como a luta de classes no sentido marxista, são contrárias à
natureza e à concepção cristã da vida.
24. Eis, veneráveis irmãos, os princípios fundamentais em que deve basear-se, para ser
sã, a ordem econômica e social.
25. Não devemos, pois, admirar-nos, se os católicos mais eminentes, atendendo aos
apelos da encíclica, empreenderam iniciativas múltiplas, para traduzirem em prática
aqueles princípios. De fato, nessa tarefa se empenharam, sob o impulso de exigências
objetivas da natureza, homens de boa vontade de todos os países do mundo.
26. Por isso, a encíclica, com razão, foi e continua a ser considerada como a Magna
Carta [5] da reconstrução econômica e social da época moderna.
A encíclica "Quadragesimo Anno"
27. Pio XI, nosso predecessor de santa memória, comemorou o quadragésimo
aniversário da encíclica Rerum Novarum, com um novo documento solene: a
encíclica Quadragesimo Anno.[6]
28. Nesta, o sumo pontífice insiste no direito e dever da Igreja de prestar a sua
contribuição insubstituível para a feliz solução dos problemas sociais mais urgentes e
mais graves, que angustiam a família humana; confirma os princípios fundamentais e as
diretrizes históricas da encíclica leonina; e aproveita a ocasião para precisar alguns
pontos de doutrina sobre os quais tinham surgido dúvidas, mesmo entre católicos, e para
desenvolver o pensamento social cristão, atendendo às novas condições dos tempos.
29. As dúvidas, levantadas diziam respeito, de modo especial, à propriedade privada, ao
regime dos salários, e à atitude dos católicos perante uma forma de socialismo
moderado.
30. Quanto à propriedade privada, o nosso predecessor torna a afirmar o seu caráter de
direito natural, e acentua o seu aspecto e a sua função social.
31. Com relação ao regime de salários, nega a tese que o declara injusto por natureza;
mas reprova ao mesmo tempo as formas inumanas e injustas que, não poucas vezes, se
praticou; inculca e desenvolve os critérios em que se deve inspirar e as condições a que
é preciso satisfazer para não se lesar a justiça nem a eqüidade.
32. Nesta matéria, o nosso predecessor indica claramente ser vantajoso, nas condições
atuais, suavisar o contrato de trabalho com elementos tomados do contrato de sociedade,
de modo que "os operários se tornem participantes ou na propriedade ou na gestão, ou,
em certa medida, nos lucros obtidos".[7]
33. Deve considerar-se da mais alta importância doutrinal e prática a afirmação de Pio
XI que o trabalho não se pode "avaliar justamente nem retribuir adequadamente, quando
não se tem em conta a sua natureza social e individual".[8] Por conseguinte, para
determinar a remuneração, declara o papa, a justiça exige que se tenham em conta, além
das necessidades de cada trabalhador e a sua responsabilidade familiar, a situação da
empresa a que os operários prestam o seu trabalho, e ainda as exigências da economia
geral.[9]
34. Entre comunismo e cristianismo, o pontífice declara novamente que a oposição é
radical, e acrescenta não se poder admitir de maneira alguma que os católicos adiram ao
socialismo moderado: quer porque ele foi construído sobre uma concepção da vida
fechada no temporal, com o bem-estar como objetivo supremo da sociedade; quer
porque fomenta uma organização social da vida comum tendo a produção como fim
único, não sem grave prejuízo da liberdade humana; quer ainda porque lhe falta todo o
princípio de verdadeira autoridade social.
35. Nem deixa Pio XI de notar que, nos quarenta anos passados desde a promulgação da
encíclica leonina, a situação histórica mudara profundamente. A livre concorrência, em
virtude da dialética que lhe é própria, tinha acabado por destruir-se a si mesma ou pouco
menos; levara a uma grande concentração da riqueza e além disso à acumulação de um
poder econômico desmedido nas mãos de poucos, "os quais, muitas vezes nem sequer
eram proprietários, mas simples depositários e administradores do capital, de que
dispunham a seu belprazer".[10]
36. E assim, como observa com perspicácia o sumo pontífice, "à liberdade de mercado
sucedeu a hegemonia econômica; à sede de lucro, a cobiça desenfreada do predomínio;
de modo que toda a economia se tornou horrivelmente dura, inexorável,
cruel",[11] escravizando os poderes públicos aos interesses de grupo e desembocando
no imperialismo internacional do dinheiro.
37. Para remediar tal situação, o supremo pastor indica, como princípios fundamentais,
o regresso do mundo econômico à ordem moral e a subordinação da busca dos lucros,
individuais ou de grupos, às exigências do bem comum. Isto comporta, segundo o seu
ensinamento, a reorganização da vida social mediante a reconstituição de corpos
intermediários autônomos com finalidade econômica e profissional, criados pelos
particulares e não impostos pelo Estado; o restabelecimento da autoridade dos poderes
públicos para desempenharem as funções que lhes competem narealização do bem
comum; e a colaboração em plano mundial entre as comunidades políticas,
mesmo no campo econômico.
38. Os temas fundamentais, característicos da magistral encíclica de Pio XI,
podem reduzir-se a dois. O primeiro proíbe completamente tomar como regra
suprema das atividades e das instituições do mundo econômico quer o
interesse individual ou de grupo, quer a livre concorrência, quer a hegemonia
econômica, quer o prestígio ou o poder da nação, ou outros critérios
semelhantes.
39. Pelo contrário, devem considerar-se regras supremas, daquelas atividades
e instituições, a justiça e a caridade social.
40. O segundo tema recomenda a criação de uma ordem jurídica, nacional e
internacional, dotada de instituições estáveis, públicas e privadas, que se
inspire na justiça social e à qual se conforme a economia; assim tornar-se-á
menos difícil aos economistas exercer a própria atividade em harmonia com
as exigências da justiça e atendendo ao bem comum.
A radiomensagem de Pentecostes de 1941
41. Também Pio XII, nosso predecessor de venerável memória, contribuiu não
pouco para definir e desenvolver a doutrina social cristã. No dia 1° de junho
de 1941, festa de Pentecostes, transmitiu uma radiomensagem "para chamar a
atenção do mundo católico sobre um acontecimento digno de ser gravado com
letras de ouro nos fastos da Igreja: o qüinquagésimo aniversário da
fundamental encíclica social Rerum Novarum de Leão XIII...[12] e para
agradecer humildemente a Deus todo-poderoso... o dom que... se dignou
conceder à Igreja com aquela encíclica do seu vigário na terra; e para louvá-lo,
pelo sopro do Espírito renovador que, por meio da mesma, derramou desde
então de modo sempre crescente sobre toda a humanidade".[13]
42. Nessa radiomensagem, o grande pontífice reivindica para a Igreja a
"irrefutável competência de julgar se as bases de uma determinada ordem
social estão de acordo com a ordem imutável que Deus Criador e Redentor
manifestou por meio do direito natural e da revelação",[14] reafirma a
vitalidade perene dos ensinamentos da encíclica Rerum Novarum e a sua
fecundidade inexaurível; e aproveita a ocasião "para expor ulteriores
princípios diretivos de moral sobre três valores fundamentais da vida social e
econômica. Esses três valores fundamentais, que se unem, se enlaçam e se
ajudam mutuamente, são: o uso dos bens materiais, o trabalho e a
família".[15]
43. Quanto ao uso dos bens materiais, o nosso predecessor afirma que o
direito de todo homem a usar daqueles bens para o seu próprio sustento tem
prioridade sobre qualquer outro direito de natureza econômica, e mesmo sobre
o direito de propriedade. Certamente, acrescenta o nosso predecessor, também
o direito de propriedade dos bens é um direito natural; mas, segundo a ordem
objetiva estabelecida por Deus, o direito de propriedade é limitado, pois não
pode constituir obstáculo a que seja satisfeita a "exigência irrevogável dos
bens, criados por Deus para todos os homens, estarem eqüitativamente à
disposição de todos, segundo os princípios da justiça e da caridade".[16]
44. No que se refere ao trabalho, retomando um tema apontado na encíclica
leonina, Pio XII confirma que ele é simultaneamente um dever e um direito de
todos e cada um dos homens. Por conseguinte, corresponde a estes, em
primeiro lugar, regular as relações mútuas do trabalho. Só no caso dos
interessados não cumprirem ou não poderem cumprir o seu dever, "compete
ao Estado intervir no campo da divisão e distribuição do trabalho, segundo a
forma e a medida requeridas pelo bem comum devidamente entendido".[17]
45. Quanto à família, o sumo pontífice afirma que a propriedade privada dos
bens materiais deve ser considerada como "espaço vital da família; isto é,
meio apto para assegurar ao pai de família a sã liberdade de que necessita para
poder cumprir os deveres que lhe foram impostos pelo Criador, para o bemestar
físico, espiritual e religioso dos seus".[18] Isto confere também à família
o direito de emigrar. Sobre este ponto, o nosso predecessor adverte que os
Estados, tanto os que permitem a emigração como os que acolhem novos
elementos, se procurarem eliminar tudo o que "pode impedir o nascimento e o
progresso de uma verdadeira confiança" [19] mútua, conseguirão uma
vantagem recíproca e contribuirão simultaneamente para o incremento do
bem-estar humano e do avanço da cultura.
Ulteriores modificações
46. A situação, já mudada ao tempo da comemoração celebrada por Pio XII,
sofreu nestes vinte anos profundas inovações, quer no interior dos países quer
nas suas relações mútuas.
47. No campo científico, técnico e econômico: a descoberta da energia
nuclear, as suas primeiras aplicações para fins bélicos e depois a sua utilização
cada vez maior para fins pacíficos; as possibilidades ilimitadas abertas pela
química aos produtos sintéticos; a difusão da automatização e da automação
no setor industrial e no dos serviços de utilidade geral; a modernização do
setor agrícola; o quase desaparecimento das distâncias nas comunicações,
sobretudo por causa do rádio e da televisão; a rapidez crescente dos
transportes; e o princípio da conquista dos espaços interplanetários.
48. No campo social: a difusão dos seguros sociais, e, nalgumas nações
economicamente desenvolvidas, o estabelecimento de sistemas de previdência
social; a formação e extensão, nos movimentos sindicais, de uma atitude de
responsabilidade perante os maiores problemas econômicos e sociais; a
elevação progressiva da instrução de base; um bem-estar cada vez mais
generalizado; a crescente mobilidade social e a conseqüente remoção das
barreiras entre as classes; o interesse do homem de cultura média pelos
acontecimentos diários de repercussão mundial. Além disso, o aumento da
eficiência dos sistemas econômicos, em cada vez maior número de países,
evidencia mais ainda os desequilíbrios econômicos e sociais entre o setor
agrícola, por um lado, e o setor da indústria e dos serviços de utilidade geral,
por outro; entre zonas economicamente desenvolvidas e zonas menos
desenvolvidas no interior de cada país; e no plano internacional, são mais
melindrosos ainda os desequilíbrios econômicos e sociais entre países
economicamente desenvolvidos e países economicamente em vias de
desenvolvimento.
49. No campo político: em muitos países, a participação na vida pública de
um número cada vez maior de cidadãos de diversas condições sociais; a
difusão e a penetração da atividade dos poderes públicos no campo econômico
e social. Acresce, além disso, no plano internacional, o declínio dos regimes
coloniais e a conquista da independência política conseguida pelos povos da
Ásia e da África; a multiplicação e a complexidade das relações entre os
povos e o aumento da sua interdependência; a criação e o desenvolvimento de
uma rede cada vez mais apertada de organismos de projeção mundial, com
tendência a inspirar-se em critérios supranacionais: organismos de finalidades
econômicas, sociais, culturais e políticas.
Temas da nova encíclica
50. Nós sentimo-nos no dever de conservar viva a chama acesa pelos nossos
grandes predecessores e de exortar a todos a que nela busquem incentivo e luz
para resolverem a questão social da maneira mais adequada aos nossos
tempos. Por este motivo, comemorando de forma solene a encíclica leonina,
comprazemo-nos em aproveitar a ocasião para repetir e precisar pontos de
doutrina já expostos pelos nossos predecessores, e ao mesmo tempo fazer uma
exposição desenvolvida do pensamento da Igreja, relativo aos novos e mais
importantes problemas do momento.
SEGUNDA PARTE
ACLARAÇÕES E AMPLIAÇÕES
DOS ENSINAMENTOS DA RERUM NOVARUM
Iniciativa pessoal e intervenção dos poderes públicos em matéria econômica
51. Devemos armar desde já que o mundo econômico é criação da iniciativa
pessoal dos cidadãos, quer desenvolvam a sua atividade individualmente, quer
façam parte de alguma associação destinada a promover interesses comuns.
52. Mas nele, pelas razões já aduzidas pelos nossos predecessores, devem
intervir também os poderes públicos com o fim de promoverem devidamente
o acréscimo de produção para o progresso social e em beneficio de todos os
cidadãos.
53. A ação desses poderes, que deve ter caráter de orientação, de estímulo, de
coordenação, de suplência e de integração, há de inspirar-se no "princípio de
subsidiariedade", [20] formulado por Pio XI na encíclica Quadragesimo Anno:
"Deve contudo manter-se arme o princípio importantíssimo em filosofia
social: do mesmo modo que não é lícito tirar aos indivíduos, a fim de o
transferir para a comunidade, aquilo que eles podem realizar com as forças e a
indústria que possuem, é também injusto entregar a uma sociedade maior e
mais alta o que pode ser feito por comunidades menores e inferiores. Isto
seria, ao mesmo tempo, grave dano e perturbação da justa ordem da
sociedade; porque o objeto natural de qualquer intervenção da mesma
sociedade é ajudar de maneira supletiva os membros do corpo social, e não
destruí-los e absorvê-los".[21]
54. É verdade que hoje os progressos dos conhecimentos científicos e das
técnicas de produção oferecem aos poderes públicos maiores possibilidades
concretas de reduzir os desequilíbrios entre os diferentes fatores produtivos,
entre as várias zonas no interior dos países e entre as diversas nações no plano
mundial. Permitem, além disso, limitar as oscilações nas alternativas das
situações econômicas e enfrentar com esperança de resultados positivos os
fenômenos do desemprego das massas. Por conseguinte, os poderes públicos,
responsáveis pelo bem comum, não podem deixar de sentir-se obrigados a
exercer no campo econômico uma ação multiforme, mais vasta e mais
orgânica; como também a adaptar-se, para este fim, às estruturas e
competências, nos meios e nos métodos.
55. Mas é preciso reafirmar sempre o princípio que a presença do Estado no
campo econômico, por mais ampla e penetrante que seja, não pode ter como
meta reduzir cada vez mais a esfera da liberdade na iniciativa pessoal dos
cidadãos; mas, deve, pelo contrário, garantir a essa esfera a maior amplidão
possível, protegendo efetivamente, em favor de todos e de cada um, os
direitos essenciais da pessoa humana. Entre estes há de enumerar-se o direito,
que todos têm, de serem e permanecerem normalmente os primeiros
responsáveis pela manutenção própria e da família; ora, isso implica que, nos
sistemas econômicos, se consinta e facilite o livre exercício das atividades
produtivas.
56. Aliás, até a evolução histórica põe em evidência cada vez maior o fato de
se não poder conseguir uma convivência ordenada e fecunda sem a
colaboração, no campo econômico, ao mesmo tempo dos cidadãos e dos
poderes públicos; colaboração simultânea realizada harmonicamente, em
proporções correspondentes às exigências do bem comum no meio das
situações variáveis e das vicissitudes humanas.
57. De fato, a experiência ensina que, onde falta a iniciativa pessoal dos
indivíduos, domina a tirania política; e há ao mesmo tempo estagnação nos
setores econômicos, destinados a produzir sobretudo a gama indefinida dos
bens de consumo e de serviços que se relacionam não só com as necessidades
materiais mas também com as exigências do espírito: bens e serviços que
exigem, de modo especial, o gênio criador dos indivíduos.
58. Onde, por outro lado, falta ou é defeituosa a necessária atuação do Estado,
há desordem insanável; e os fracos são explorados pelos fortes menos
escrupulosos, que medram por toda a parte e em todo o tempo, como a cizânia
no meio do trigo.
A SOCIALIZAÇÃO
Origens e extensão do fenômeno
59. A socialização é um dos aspectos característicos da nossa época. Consiste
na multiplicação progressiva das relações dentro da convivência social, e
comporta a associação de várias formas de vida e de atividade, e a criação de
instituições jurídicas. O fato deve-se a multíplices causas históricas, como aos
progressos científicos e técnicos, à maior eficiência produtiva e ao aumento do
nível de vida.
60. A socialização é simultaneamente efeito e causa de uma crescente
intervenção dos poderes públicos, mesmo nos domínios mais delicados, como
os da saúde, da instrução e educação das novas gerações, da orientação
profissional, dos métodos de recuperação e readaptação dos indivíduos de
algum modo menos dotados. Mas é também fruto e expressão de uma
tendência natural, quase irreprimível, dos seres humanos: tendência a
associarem-se para fins que ultrapassam as capacidades e os meios de que
podem dispor os indivíduos em particular. Esta tendência deu origem,
sobretudo nestes últimos decênios, a grande variedade de grupos,
movimentos, associações e instituições, com finalidades econômicas,
culturais, sociais, desportivas, recreativas, profissionais e políticas, tanto nos
diversos países como no plano mundial.
Apreciação
61. E claro que a socialização assim entendida tem numerosas vantagens:
torna possível satisfazer muitos direitos da pessoa humana, especialmente os
chamados econômicos e sociais, por exemplo, o direito aos meios
indispensáveis ao sustento, ao tratamento médico, a uma educação de base
mais elevada, a uma formação profissional mais adequada, à habitação, ao
trabalho, a um repouso conveniente e à recreação. Além disso, através da
organização cada vez mais perfeita dos meios modernos da comunicação –
imprensa, cinema, rádio e televisão – permite-se a todos de participar nos
acontecimentos de caráter mundial.
62. Mas, por outro lado a socialização multiplica os organismos e torna
sempre mais minuciosa a regulamentação jurídica das relações entre os
homens, em todos os domínios. Deste modo, restringe o campo da liberdade
de ação dos indivíduos. Utiliza meios, segue métodos e cria círculos fechados,
que tornam difícil a cada um pensar independentemente dos influxos externos,
agir por iniciativa própria, exercer a própria responsabilidade, afirmar e
enriquecer a própria pessoa. Sendo assim, deverá concluir-se que a
socialização, crescendo em amplitude e profundidade, chegará a reduzir
necessariamente os homens a autômatos? A esta pergunta temos de responder
negativamente.
63. Não se deve considerar a socialização como resultado de forças naturais
impelidas pelo determinismo; ao contrário, como já observamos, é obra dos
homens, seres conscientes e livres, levados por natureza a agir como
responsáveis, ainda que em suas ações sejam obrigados a reconhecer e
respeitar as leis do progresso econômico e social, e não possam subtrair-se de
todo à pressão do ambiente.
64. Por isso, concluímos que a socialização pode e deve realizar-se de maneira
que se obtenham as vantagens que ela traz consigo e se evitem ou reprimam as
conseqüências negativas.
65. Para o conseguir, requer-se, porém, que as autoridades públicas se tenham
formado, e realizem praticamente, uma concepção exata do bem comum; este
compreende o conjunto das condições sociais que permitem e favorecem nos
homens o desenvolvimento integral da personalidade. E cremos necessário,
além disso, que os corpos intermediários e as diversas iniciativas sociais, em
que sobretudo procura exprimir-se e realizar-se a socialização, gozem de uma
autonomia efetiva relativamente aos poderes públicos, e vão no sentido dos
seus interesses específicos, com espírito de leal colaboração mútua e de
subordinação às exigências do bem comum. Nem é menos necessário que os
ditos corpos apresentem forma e substância de verdadeiras comunidades; isto
é, que os seus membros sejam considerados e tratados como pessoas, e
estimulados a participar ativamente na vida associativa.
66. As organizações da sociedade contemporânea desenvolvem-se, e a ordem
dentro delas consegue-se, cada vez mais, graças a um equilíbrio renovado:
exigência, por um lado, de colaboração autônoma prestada por todos,
indivíduos e grupos; e, por outro lado, coordenação no devido tempo e
orientação promovidas pelas autoridades públicas.
67. Se a socialização se praticasse em conformidade com as leis morais
indicadas, não traria, por sua natureza, perigos graves de vir a oprimir os
indivíduos. Pelo contrário, ajudaria a que nestes se desenvolvessem as
qualidades próprias da pessoa humana. Reorganizaria até a vida comum, tal
como a apresentava o nosso predecessor Pio XI na encíclica Quadragesimo
Anno (22): condição indispensável para a satisfação das exigências da justiça
social.
A REMUNERAÇÃO DO TRABALHO
Critérios de justiça e de eqüidade
68. Amargura profunda invade o nosso espírito diante do espetáculo
tristíssimo de inumeráveis trabalhadores em muitas nações e continentes
inteiros, os quais recebem um salário que os submete, a eles e às famílias, a
condições de vida infra-humanas. Isto deve-se também a estar nos seus
primórdios, ou numa fase de insuficiente desenvolvimento, o processo da
industrialização nessas nações e continentes.
69. Mas, em alguns desses países, a abundância e o luxo desenfreado de uns
poucos privilegiados contrasta, de maneira estridente e ofensiva, com as
condições de mal-estar extremo da maioria; noutras nações obriga-se a atual
geração a viver privações desumanas para o poder econômico nacional crescer
segundo um ritmo de aceleração que ultrapassa os limites marcados pela
justiça e pela humanidade; e noutras, parte notável do rendimento nacional
consome-se em reforçar ou manter um mal-entendido prestígio nacional, ou
gastam-se somas altíssimas nos armamentos.
70. Além disso, nos países economicamente desenvolvidos, não é raro que
para ofícios pouco absorventes ou de valor discutível se estabeleçam
distribuições ingentes, enquanto que as correspondentes ao trabalho assíduo e
profícuo de categorias inteiras de cidadãos honestos e operosos são demasiado
reduzidas, insuficientes ou, pelo menos, desproporcionadas com a ajuda que
eles prestam à comunidade, ou com o rendimento da respectiva empresa, ou
com o rendimento total da economia da nação.
71. Julgamos, pois, dever nosso armar uma vez mais que a retribuição do
trabalho, assim como não pode ser inteiramente abandonada às leis do
mercado, também não pode fixar-se arbitrariamente; há de estabelecer-se
segundo a justiça e a eqüidade. É necessário que aos trabalhadores se dê um
salário que lhes proporcione um nível de vida verdadeiramente humano e lhes
permita enfrentar com dignidade as responsabilidades familiares. É preciso
igualmente que, ao determinar-se a retribuição, se tenham em conta o
concurso efetivo dos trabalhadores para a produção, as condições econômicas
das empresas e as exigências do bem comum nacional. Considerem-se de
modo especial as repercussões sobre o emprego global das forças de trabalho
dentro do país inteiro, e ainda as exigências do bem comum universal, isto é,
as que dizem respeito às comunidades internacionais, de natureza e extensão
diversas.
72. É claro que os critérios acima expostos valem sempre e em toda a parte.
Contudo, não é possível determinar a medida em que devem aplicar-se, sem
atender à riqueza disponível; esta pode variar e varia de fato, na quantidade e
na qualidade, de nação para nação; e, mesmo dentro da mesma nação, de uma
época para outra.
Ajustamento entre o progresso econômico e o progresso social
73. Enquanto as economias dos vários países se desenvolvem rapidamente,
com ritmo ainda mais intenso neste último após guerra, julgamos oportuno
lembrar um princípio fundamental. O progresso social deve acompanhar e
igualar o desenvolvimento econômico, de modo que todas as categorias
sociais tenham parte nos produtos obtidos em maior quantidade. É preciso,
pois, vigiar com atenção e trabalhar eficazmente para que os desequilíbrios
econômicos e sociais não cresçam, antes, quanto possível, se vão atenuando.
74. "A própria economia nacional – nota sabiamente o nosso predecessor Pio
XII – assim como é fruto da atividade de homens que trabalham unidos na
comunidade política, assim não tende senão a assegurar, sem interrupção, as
condições materiais em que poderá desenvolver-se plenamente a vida
individual dos cidadãos. Onde isto se conseguir, e de modo duradouro um
povo será, de verdade, economicamente rico, porque o bem-estar geral, e, por
conseguinte, o direito pessoal de todos ao uso dos bens terrenos encontra-se
deste modo realizado conforme o plano estabelecido pelo Criador.[23] Dai
segue-se que a riqueza econômica de um povo não depende só da abundância
global dos bens, mas também, e mais ainda, da real e eficaz distribuição deles
segundo a justiça, para tornar possível a melhoria do estado pessoal dos
membros da sociedade: é este o fim verdadeiro da economia nacional.
75. Não podemos deixar de aludir ao fato de que hoje, em muitas economias,
as médias e grandes empresas conseguem com freqüência aumentar rápida e
consideravelmente a capacidade produtiva por meio do autofinanciamento.
Nestes casos, cremos poder afirmar que aos trabalhadores se deve reconhecer
um título de crédito nas empresas em que trabalham, especialmente se ainda
lhes toca uma retribuição não superior ao salário mínimo.
76. A este propósito convém recordar o princípio exposto pelo nosso
predecessor Pio XI na encíclica Quadragesimo Anno: "É completamente falso
atribuir só ao capital, ou só ao trabalho, aquilo que se obtém com a ação
conjunta de um e de outro, e é também de todo injusto que um deles, negando
a eficácia do contributo do outro, se arrogue somente a si tudo o que se
realiza".[24]
77. A essa exigência de justiça pode satisfazer-se de diversas maneiras que a
experiência sugere. Uma delas, e das mais desejáveis, consiste em fazer que
os trabalhadores possam chegar a participar na propriedade das empresas, da
forma e no grau mais convenientes. Pois nos nossos dias, mais ainda que nos
tempos do nosso predecessor, "é necessário procurar com todo o empenho
que, para o futuro, os capitais ganhos, não se acumulem nas mãos dos ricos
senão na justa medida, e se distribuam com certa abundância entre os
operários".[25]
78. Devemos ainda recordar que o equilíbrio entre a remuneração do trabalho
e o rendimento deve conseguir-se em harmonia com as exigências do bem
comum, tanto da comunidade nacional como de toda a família humana.
79. Devem considerar-se exigências do bem comum no plano nacional: dar
emprego ao maior número possível de trabalhadores; evitar que se constituam
categorias privilegiadas, mesmo entre trabalhadores; manter uma justa
proporção entre salários e preços; tornar acessíveis bens e serviços de
interesse geral ao maior número de cidadãos; eliminar ou reduzir os
desequilíbrios entre os setores da agricultura, da indústria e dos serviços;
realizar o equilíbrio entre a expansão econômica e o desenvolvimento dos
serviços públicos essenciais; adaptar, na medida do possível, as estruturas
produtivas aos progressos das ciências e das técnicas; moderar o teor de vida
já melhorado da geração presente, tendo a intenção de preparar um porvir
melhor as gerações futuras.
80. São exigências do bem comum no plano mundial: evitar qualquer forma
de concorrência desleal entre as economias dos vários países; favorecer a
colaboração entre as economias nacionais por meio de convênios eficazes;
cooperar para o desenvolvimento econômico dos países menos prósperos.
81. É claro que estas exigências do bem comum, nacional ou mundial,
também se devem ter presentes quando se trata de fixar as partes de
rendimento que se hão de entregar, sob forma de ganhos, aos responsáveis
pela direção das empresas; e, sob forma de juros ou dividendos, aos que
forneceram os capitais.
AS EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA QUANTO ÀS ESTRUTURAS
PRODUTIVAS
Estruturas conforme à dignidade do homem
82. A justiça há de respeitar-se, não só na distribuição da riqueza, mas
também na estrutura das empresas em que se exerce a atividade produtiva. Na
verdade, exige a natureza que os homens, no exercício da atividade produtiva,
encontrem possibilidade de empenhar a própria responsabilidade e aperfeiçoar
o próprio ser.
83. Por isso, quando as estruturas, o funcionamento e o condicionalismo de
um sistema econômico comprometem a dignidade humana dos que nele
trabalham, entorpecem sistematicamente o sentido da responsabilidade ou
impedem que a iniciativa pessoal se manifeste, tal sistema é injusto, mesmo
se, por hipótese, a riqueza nele produzida alcança altos níveis e é distribuída
segundo as regras da justiça e da eqüidade.
Confirmação de uma diretriz
84. Não é possível determinar, em pormenor, quais as estruturas do sistema
econômico que melhor correspondem à dignidade humana e mais eficazmente
desenvolvem o sentido da responsabilidade. Contudo, o nosso predecessor Pio
XII indica oportunamente esta diretriz: "A propriedade agrícola pequena e
média, a artesanal e profissional, comercial e industrial, deve ser assegurada e
promovida; as uniões cooperativistas devem garantir-lhes as vantagens
próprias da grande exploração; e nas grandes explorações deve ficar aberta a
possibilidade de suavizar o contrato de trabalho pelo contrato da
sociedade".[26]
Empresas artesanais e cooperativas de produção
85. Devem-se conservar e promover, de harmonia com o bem comum e
conforme as possibilidades técnicas, a empresa artesanal, a exploração
agrícola familiar, e também a empresa cooperativista, como integração das
duas precedentes.
86. Mais adiante, voltaremos a falar da empresa agrícola familiar. Aqui,
julgamos oportuno algumas observações acerca da empresa artesanal e das
cooperativas.
87. Antes de mais, é preciso notar que ambas as empresas, para conseguirem
viver, devem adaptar-se constantemente nas estruturas, no funcionamento e
nos tipos de produtos às situações sempre novas, determinadas pelos
progressos das ciências e das técnicas, e ainda pela variação nas exigências e
preferências dos consumidores. Adaptação que tem de realizar, primeiro que
todos, o artesanato e os sócios das cooperativas.
88. Para este fim, é necessário que uns e outros possuam uma boa formação
não só técnica mas também humana, e se encontrem organizados
profissionalmente; e é também indispensável que se exerça uma política
econômica apropriada, no que diz respeito sobretudo à instrução, ao regime
fiscal, ao crédito e à previdência social.
89. Por outro lado, a ação dos poderes públicos em favor do artesanato e dos
sócios das cooperativas encontra-se também justificada pelo fato de
representar categorias a que pertencem valores humanos genuínos e que
contribuem para o progresso da civilização.
90. Por estes motivos, convidamos, com amor paternal, os nossos caríssimos
filhos, artífices e sócios das cooperativas, espalhados pelo mundo inteiro, a
tomarem consciência da nobreza da sua profissão e da importância do que
fazem para nas comunidades nacionais se manter o sentimento da
responsabilidade e espírito de colaboração, e se conservar vivo o amor do
trabalho perfeito e original.
Presença ativa dos trabalhadores nas médias e grandes empresas
91. Seguindo na direção indicada pelos nossos predecessores também nós
consideramos que é legítima nos trabalhadores a aspiração a participarem
ativamente na vida das empresas, em que estão inseridos e trabalham. Não é
possível determinar antecipadamente o modo e o grau dessa participação,
dependendo eles do estado concreto que apresenta cada empresa. Esta
situação pode variar de empresa para empresa, e, dentro de cada empresa, está
sujeita a alterações muitas vezes rápidas e fundamentais. Julgamos contudo
útil chamar a atenção para a continuidade da presença ativa dos trabalhadores,
tanto na empresa particular como na pública; deve-se tender sempre para que
a empresa se torne uma comunidade de pessoas, nas relações, nas funções e na
situação de todo o seu pessoal.
92. Ora, isto exige que as relações entre empresários e dirigentes, por um lado,
e trabalhadores, por outro, sejam caracterizadas pelo respeito, pela estima e
compreensão, pela colaboração leal e ativa, e pelo amor da obra comum; e que
o trabalho seja considerado e vivido por todos os membros da empresa, não só
como fonte de lucros, mas também como cumprimento de um dever e
prestação de um serviço. O que supõe, também, poderem os trabalhadores
fazer ouvir a sua voz e contribuir para o bom funcionamento e o progresso da
empresa. Observava o nosso predecessor Pio XII: "A função econômica e
social, que todo o homem aspira a desempenhar, exige que a atividade de cada
um não se encontre submetida totalmente à vontade alheia".[27] Uma
concepção humana da empresa deve, sem dúvida, salvaguardar a autoridade e
a eficiência necessária da unidade de direção; mas não pode reduzir os
colaboradores de todos os dias à condição de simples e silenciosos executores,
sem qualquer possibilidade de fazerem valer a própria experiência,
completamente passivos quanto às decisões que os dirigem.
93. É de notar, por último, que o exercício da responsabilidade, por parte dos
empregados nos organismos produtivos, não só corresponde às exigências
legítimas, próprias da natureza humana, mas está também em harmonia com o
progresso histórico em matéria econômica, social e política.
94. Infelizmente, como já indicamos e veremos ainda mais extensamente, não
são poucos os desequilíbrios econômicos e sociais que ofendem hoje a justiça
e a humanidade; e erros gravíssimos ameaçam as atividades, os fins, as
estruturas e o funcionamento do mundo econômico. Apesar disso, não se pode
negar que os regimes econômicos, sob o impulso do progresso científico e
técnico, se vão hoje modernizando e tornando mais eficientes, a um ritmo
muito mais rápido que antigamente. Isto exige dos trabalhadores aptidões e
habilitações profissionais mais elevadas. Ao mesmo tempo e como
conseqüência, encontram eles a sua disposição maior número de meios e mais
extensas margens de tempo, para se instruírem e atualizarem e para
aperfeiçoarem a própria cultura e a formação moral e religiosa.
95. Torna-se também possível aumentar os anos destinados à educação de
base e à formação profissional das novas gerações.
96. Vai-se deste modo criando um ambiente humano que favorece a
possibilidade de as classes trabalhadoras assumirem maiores
responsabilidades mesmo dentro das empresas; e as nações têm cada vez
maior interesse em que todos os cidadãos se considerem responsáveis pela
realização do bem comum, em todos os setores da vida social.
Presença dos trabalhadores em todos os níveis
97. Na época moderna, aumentou notavelmente o movimento associativo dos
trabalhadores; e foi reconhecido em geral nas disposições jurídicas dos
estados e até no plano internacional, especialmente como instrumento de
colaboração prestada sobretudo por meio do contrato coletivo. Não podemos,
todavia, deixar de notar como é útil ou até necessário, que a voz dos
trabalhadores tenha possibilidade de se fazer ouvir e atender, fora mesmo de
cada organismo produtivo, e isto em todos os níveis.
98. A razão está em que os organismos produtivos, por mais extensas que
sejam as suas dimensões e maior e mais profunda a sua eficiência, são órgãos
vitais na estruturação econômica e social das respectivas nações e estão
condicionados por ela.
99. Todavia, as resoluções, que mais influem no conjunto, não são tomadas
pelo organismo produtivo, mas sim pelos poderes públicos ou por instituições
de alcance mundial, regional ou nacional, pertencentes à economia ou à
produção. Daqui a oportunidade, ou mesmo necessidade, de fazerem parte
desses poderes ou instituições, além dos que fornecem os capitais ou dos seus
representantes, também os trabalhadores ou quem lhes representa os direitos,
exigências e aspirações.
100. O nosso pensamento afetuoso e o nosso paternal estímulo dirigem-se
para as associações profissionais e os movimentos sindicais de inspiração
cristã, presentes e ativos em vários continentes. Apesar de muitas
dificuldades, por vezes bem sérias, eles têm sabido trabalhar e continuam a
fazê-lo, a favor dos interesses dos trabalhadores e da sua elevação material e
moral, tanto no interior de cada país como no plano mundial.
101. É com satisfação que julgamos dever nosso fazer notar que o seu trabalho
não há de ser medido apenas pelos resultados diretos e imediatos, que se
encontram à vista; mas também pelas repercussões positivas sobre todo o
mundo do trabalho, onde difunde idéias bem orientadas e exerce um influxo
cristãmente renovador.
102. Digno de estima é igualmente o influxo que os nossos amados filhos
exercem, com espírito cristão, nas outras associações profissionais e sindicais,
inspiradas nos princípios naturais da convivência e respeitadoras da liberdade
de consciência.
103. Apraz-nos expressar a nossa estima sincera pela Organização
Internacional do Trabalho (OIT). Há dezenas de anos que ela vai
contribuindo, de maneira eficaz e preciosa, para implantar no mundo uma
ordem econômica e social baseada na justiça e na humanidade, ordem que
exprime também as legítimas reivindicações dos trabalhadores.
A PROPRIEDADE PRIVADA
Situação nova
104. Nestes últimos decênios, como é do conhecimento geral, nos maiores
organismos econômicos foi acentuando-se cada vez mais a separação entre a
propriedade dos bens produtivos e as responsabilidades na direção. Sabemos
que nasceram daqui problemas difíceis de controle para os poderes públicos,
tendo eles de conseguir que os objetivos pretendidos pelos dirigentes de
grandes organizações, sobretudo daqueles que têm maior influência em toda a
vida econômica de um país, não se oponham às exigências do bem comum.
Esses problemas, como prova a experiência, surgem, tanto se os capitais das
grandes empresas são de propriedade privada como se pertencem a entidades
públicas.
105. É verdade que hoje já há um bom número de cidadãos, e cada dia vão
sendo mais, que, dados em organismos de seguros ou de previdência social,
olham com serenidade para o futuro: serenidade que, em outros tempos, se
fundava sobre a posse de patrimônios, embora fossem modestos.
106. Por último, observe-se que nos nossos dias o homem aspira mais a
conseguir habilitações profissionais do que tornar-se proprietário de bens; e
tem maior confiança nos recursos que provém do trabalho ou no direito
baseado no mesmo, do que em rendimentos vindos do capital ou em direitos
nele fundados.
107. Isso encontra-se, aliás, em harmonia com a nobreza do trabalho como
afirmação imediata da pessoa diante do capital, que é, por sua natureza,
instrumento. Esta mudança de mentalidade há de considerar-se, portanto, um
progresso na civilização humana.
108. Os aspectos indicados do mundo econômico, têm contribuído para
espalhar a dúvida sobre se deixou de ter valor hoje, ou perdeu importância,
um princípio de ordem econômica e social constantemente ensinado e
propugnado pelos nossos predecessores, o qual diz ser de direito natural a
propriedade privada, mesmo tratando-se de bens produtivos.
Reafirmação do direito de propriedade
109. Essa dúvida não tem razão de ser. O direito de propriedade privada,
mesmo sobre bens produtivos, tem valor permanente, pela simples razão de
ser um direito natural fundado sobre a prioridade ontológica e finalista de cada
ser humano em relação à sociedade. Seria, aliás, inútil insistir na livre
iniciativa pessoal em campo econômico se a essa iniciativa não fosse
permitido dispor livremente dos meios indispensáveis para se afirmar. Além
disso, a história e a experiência provam que, nos regimes políticos que não
reconhecem o direito de propriedade privada sobre os bens produtivos, são
oprimidas ou sufocadas as expressões fundamentais da liberdade; é legítimo,
portanto, concluir que estas encontram naquele direito garantia e incentivo.
110. Assim se explica como certos movimentos sociais e políticos que se
propõem conciliar na vida social a justiça com a liberdade e que eram, até há
pouco, claramente opostos ao direito de propriedade privada dos bens de
produção, hoje, melhor informados da realidade, revêem a própria posição e
tomam uma atitude substancialmente favorável a esse direito.
111. Fazemos nossas, nesta matéria, as observações do nosso predecessor Pio
XII: "Quando a Igreja defende o princípio da propriedade privada, tem em
vista um alto fim ético e social. Não quer dizer que ela pretenda conservar
pura e simplesmente o estado presente das coisas, como se nele visse a
expressão da vontade divina, nem proteger por princípio o rico e o plutocrata,
contra o pobre e o proletário... A Igreja pretende conseguir que a instituição da
propriedade privada venha a ser o que deve, conforme o desígnio da
Sabedoria Divina e as disposições da natureza".[28] Quer dizer, pretende que
a propriedade privada seja garantia da liberdade essencial da pessoa humana e
elemento insubstituível da ordem social.
112. Observamos também que hoje as economias, em muitos países, vão
aumentando rapidamente a própria eficiência produtiva. Mas, crescendo o
rendimento, exigem a justiça e a eqüidade, como já se viu, que seja também
elevada a remuneração do trabalho, dentro dos limites consentidos pelo bem
comum. Isto dará aos trabalhadores maior facilidade de poupar e constituir um
patrimônio. Não se compreende, portanto, como se pode contestar o caráter
natural de um direito que encontra a sua principal fonte e o seu alimento
perpétuo na fecundidade do trabalho; que constitui um meio apropriado para a
afirmação da pessoa humana e para o exercício da responsabilidade em todos
os campos; e que é elemento de estabilidade serena para a família, e de
pacífico e ordenado progresso na convivência social.
Difusão efetiva
113. Não basta afirmar que o caráter natural do direito de propriedade privada
se aplica também aos bens produtivos; é necessário ainda insistir para que ela
se difunda efetivamente entre todas as classes sociais.
114. Como afirma o nosso predecessor Pio XII, a dignidade da pessoa humana
"exige normalmente, como fundamento natural para a vida, o direito ao uso
dos bens da terra, ao qual corresponde a obrigação fundamental de conceder
uma propriedade privada, na medida do possível a todos" [29]e, por outro
lado, entre as exigências que derivam da nobreza moral do trabalho, encontrase
também "a da conservação e do aperfeiçoamento de uma ordem social que
torne possível e assegure a todas as classes do povo a propriedade privada,
embora seja modesta".[30]
115. Ainda mais se deve urgir a difusão da propriedade num tempo como o
nosso, em que, como já se indicou, mais numerosos são os países que
desenvolvem rapidamente os próprios sistemas econômicos. Por isso,
utilizando os vários recursos técnicos de eficiência comprovada, não é difícil
promover iniciativas e exercer uma política econômica e social que mente e
facilite difusão mais extensa da propriedade particular dos bens de consumo
duráveis, da habitação, das terras, das ferramentas dos artífices e alfaias da
casa agrícola e de ações nas médias e grandes empresas. Alguns países,
economicamente prósperos e socialmente avançados, já o estão
experimentando com feliz resultado.
Propriedade pública
116. O que fica dito não exclui, como é óbvio, que também o Estado e outras
entidades públicas possam legitimamente possuir, em propriedade, bens
produtivos, especialmente quando "eles chegam a conferir tal poder
econômico, que não é possível deixá-lo nas mãos de pessoas privadas sem
perigo do bem comum".[31] A época moderna tende para a expansão da
propriedade pública: do Estado e de outras coletividades. O fato explica-se
pelas funções, cada vez mais extensas, que o bem comum exige dos poderes
públicos. Mas, também nesta matéria, deve aplicar-se o princípio da
subsidiariedade, acima enunciado. Assim, o Estado, e, como ele, as outras
entidades de direito público, não devem aumentar a sua propriedade senão na
medida em que verdadeiramente o exijam motivos evidentes do bem comum,
e não apenas com o fim de reduzir, e menos ainda eliminar, a propriedade
privada.
117. Nem se pode esquecer que as iniciativas econômicas do Estado, e das
outras entidades de direito público, devem confiar-se a pessoas que juntem à
competência provada, a honestidade reconhecida e um vivo sentimento de
responsabilidade para com o país. Além disso, a atividade que exercem deve
estar sujeita a uma vigilância atenta e constante, mesmo para evitar que,
dentro da própria organização do Estado se formem núcleos de poder
econômico, com prejuízo do bem da comunidade, que é a sua razão de ser.
Função social
118. Outro ponto de doutrina, proposto constantemente pelos nossos
predecessores, é que o direito de propriedade privada sobre os bens, possui
intrinsecamente uma função social. No plano da criação, os bens da terra são
primordialmente destinados à subsistência digna de todos os seres humanos,
como ensina sabiamente o nosso predecessor Leão XIII na encíclica Rerum
Novarum: "Quem recebeu da liberalidade divina maior abundância de bens, ou
externos e corporais ou espirituais, recebeu-os para os fazer servir ao
aperfeiçoamento próprio, e simultaneamente, como ministro da Divina
Providência, à utilidade dos outros: 'quem tiver talento, trate de não o
esconder; quem tiver abundância de riquezas, não seja avaro no exercício da
misericórdia; quem souber um ofício para viver, faça participar o seu próximo
da utilidade e proveito do mesmo'".[32]
119. Hoje, tanto o Estado como as entidades de direito público vão estendendo
continuamente o campo da sua presença e iniciativa. Mas nem por isso
desapareceu, como alguns erroneamente tendem a pensar, a função social da
propriedade privada: esta deriva da natureza mesma do direito de propriedade.
Há sempre numerosas situações dolorosas e indigências delicadas e agudas,
que a assistência pública não pode contemplar nem remediar. Por isso,
continua sempre aberto um vasto campo à sensibilidade humana e à caridade
cristã dos indivíduos. Observe-se por último que, para desenvolver os valores
espirituais, são muitas vezes mais fecundas as múltiplas iniciativas dos
particulares ou dos grupos, que a ação dos poderes públicos.
120. Apraz-nos aqui recordar como o Evangelho considera legítimo o direito
de propriedade privada. Ao mesmo tempo, porém, o Divino Mestre dirige
freqüentemente convites instantes aos ricos para que transformem os seus
bens materiais em bens espirituais, repartindo-os com os necessitados: bens
que o ladrão não rouba, nem a traça ou a ferrugem destroem, e que se
encontrarão aumentados nos celeiros eternos do Pai do Céu: "Não ajunteis
para vós tesouros na terra, onde a traça e o caruncho os corroem e onde os
ladrões arrombam e roubam, mas ajuntai para vós tesouros nos céus, onde
nem a traça, nem o caruncho corroem, e onde os ladrões não arrombam nem
roubam" (Mt 6,19-20). E o Senhor considerará dada ou negada a si mesmo a
esmola dada ou negada aos indigentes: "Todas as vezes que fizestes (estas
coisas) a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim as fizestes" (Mt
25,40).
TERCEIRA PARTE
NOVOS ASPECTOS DA QUESTÃO SOCIAL
121.O avanço da história faz ressaltar cada vez mais as exigências da justiça e
da eqüidade que não intervêm apenas nas relações entre operários e empresas
ou direção destas, mas dizem também respeito às relações entre os diversos
setores econômicos, entre zonas economicamente desenvolvidas e zonas
economicamente menos desenvolvidas dentro da economia nacional, e, no
plano, mundial, às relações entre países desigualmente desenvolvidos em
matéria econômica e social.
EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA
QUANTO ÀS RELAÇÕES ENTRE OS SETORES PRODUTIVOS
A agricultura, setor subdesenvolvido
122. Não parece que a população rural do mundo, considerada em toda a sua
extensão, tenha diminuído, em números absolutos. Apesar disso, é
incontestável que se dá um êxodo das populações rurais em direção aos
centros urbanos. É um fato que se verifica em quase todos os países e algumas
vezes atinge proporções enormes e cria problemas humanos complexos,
difíceis de resolver.
123. Sabemos que, à medida que uma economia progride, diminui a mão de
obra empregada na agricultura, aumenta a percentagem dos que trabalham na
indústria e nos vários serviços. Pensamos, contudo, que o êxodo da população,
do setor agrícola para outros setores produtivos, não é provocado somente
pelo progresso econômico. Deve-se a múltiplas outras razões, como a vontade
de fugir de um ambiente considerado fechado e sem futuro; a sede de
novidades e aventuras, que domina a geração presente; a esperança de
enriquecimento rápido; a miragem de uma vida mais livre, com os meios e
facilidades que oferecem os aglomerados urbanos. Mas julgamos que não se
pode duvidar de que este êxodo é também provocado pelo fato de ser o setor
agrícola, quase em toda a parte, um setor deprimido, tanto no que diz respeito
ao índice de produtividade da mão-de-obra, como pelo que se refere ao nível
de vida das populações rurais.
124. Daí um problema de fundo, que se apresenta a quase todos os Estados:
como reduzir o desequilíbrio da produtividade entre o setor agrícola, por um
lado, e o setor industrial e os vários serviços, pelo outro? Isto, para o nível de
vida da população rural se distanciar o menos possível do nível de vida dos
que trabalham na indústria e nos serviços; para os agricultores não sofrerem
um complexo de inferioridade, antes, pelo contrário, se persuadirem de que,
também no meio rural, podem afirmar e aperfeiçoar a sua personalidade pelo
trabalho, e olhar confiados para o futuro.
125. Parece-nos, por isso, oportuno indicar algumas diretrizes suscetíveis de
contribuírem para resolver o problema. Valem, pensamos nós, qualquer que
seja o ambiente histórico; contanto que sejam aplicadas, como é óbvio, da
maneira e na medida que o ambiente permitir.
Adaptação dos serviços essenciais
126. Primeiramente, é indispensável que exista o empenho, sobretudo por
parte dos poderes públicos, em que, nos ambientes agrícolas, se desenvolvam,
como convém, os serviços essenciais: estradas, transportes, comunicações,
água potável, alojamento, assistência sanitária, instrução elementar, formação
técnica e profissional, boas condições para a vida religiosa, meios recreativos,
e tudo o que requer a casa rural em mobiliário e modernização. Se faltarem
nos meios rurais estes serviços, que hoje são elementos constitutivos de um
nível de vida digno, o desenvolvimento econômico e o progresso social vêm a
tornar-se quase impossíveis ou demasiado lentos. Donde resulta que o êxodo
da população rural se torna praticamente inevitável e dificilmente se consegue
discipliná-lo.
Desenvolvimento gradual e harmonioso do sistema econômico
127. É necessário também que o desenvolvimento econômico da nação se
realize de modo gradual e harmônico entre todos os setores produtivos. Quer
dizer, é preciso que no setor agrícola se realizem as transformações que dizem
respeito às técnicas da produção, à escolha das culturas e à estruturação das
empresas, conforme as permitir ou exigir a vida econômica no seu conjunto;
de maneira que se atinja, logo que seja possível, um nível de vida conveniente,
comparado com o setor da indústria e dos vários serviços.
128. A agricultura chegará assim a absorver maior quantidade de bens
industriais e a requerer serviços mais qualificados. Por sua vez, oferecerá aos
outros dois setores e à comunidade inteira produtos que melhor correspondam,
em quantidade e qualidade, às exigências do consumo; e contribuirá para a
estabilização da moeda, elemento positivo para o progresso ordenado do
sistema econômico total.
129. Deste modo, julgamos que se tornaria menos difícil regulamentar, tanto
nas regiões donde parte como naquelas a que se dirige o movimento da mãode-
obra, libertada pela moderniza%2